A ciência é uma coisa séria. Tão séria que na ecologia existe uma preocupação frequente de criar ferramentas aplicáveis não somente para a compreensão de como os indivíduos das espécies se organizam no espaço e tempo, mas também de mecanismos que possam ser usados para a sua conservação e manejo. Assim, várias espécies são foco de estudos quanto aos padrões de distribuição espacial da abundância dos organismos. Mas por que entender o padrão de distribuição das espécies? Para responder essa pergunta devemos antes distinguir dois tipos de distribuição, a local e a regional. A distribuição espacial local é relacionada ao quanto a área de vida de um organismo se aproxima ou se sobrepõe a de outro organismo. É um reflexo do adensamento populacional, possuindo uma relação intrínseca em como o organismo usa o meio ambiente. Já a distribuição regional, foca onde achar o organismo em um mapa, ou seja está relacionado à distribuição geográfica do mesmo. Aqui nesse texto quando falar de distribuição espacial estarei restritamente falando da distribuição local.
Voltando as espécies, existe um grupo de animais extremamente ameaçado. Os principais elementos de perigo para elas são a desinformação por parte das comunidades humanas que vivem próximas as populações das espécies, e a falta de estudos sobre esses animais, por se tratarem de organismos difíceis de ver e localizar. Esse grupo de espécies estão agrupadas no gênero Monocerus, sendo que existem ao menos quatro espécies conhecidas, M. tyrannus agora já extinta, M. orientalis, M. europus e M. montanus. A última espécie a ser descrita foi M. montanus em 1985, e já no momento da sua descoberta criou-se uma expectativa pessimista com relação a manutenção das suas populações. O problema que M. montanus possui apenas seis populações no mundo, todas nas grandes cadeias de montanhas do mundo, sendo assim a única espécie a viver nas américas. Por possuir um habitat tão restrito, entender como as populações localmente estão espacialmente distribuídas torna-se uma ferramenta essencial para sua conservação.
Felizmente, Hulbert em 1990, conseguiu fazer um estudo exaustivo com as populações de M. montanus espalhadas pelo mundo. Inclusive, seu trabalho foi tão extenso que ele elaborou um senso populacional muito refinado (afinal contabilizou todos os indivíduos das seis áreas, isso mesmo TODOS), que permitiu um não só entender as dinâmicas populacionais da espécie, mas discutir sobre os métodos empregados na ecologia. Hulbert percebeu que todas as populações observadas possuíam o mesmo valor para o índice de agregação que ele estava usando. Entretanto, ao observar diretamente as populações, Hulbert viu que os padrões não era similares, inclusive as distribuições das populações eram muito diferentes. Por exemplo, a população de Torres del Paine no Chile, são na verdade duas populações disjuntas que vivem cada uma em um pico dessas montanhas. Diferente da população que vive em Cervino, na fronteira entre Suíça e Itália, na qual a quantidade de indivíduos aumenta seguindo as escarpas da montanha, formando um belo pico na distribuição.
Ao observar tal discrepância entre o índice calculado e a real distribuição dos organismos, Hulbert faz um belo estudo sobre os índice de agrupamento mais comumente utilizados e chegou a duas conclusões. Na primeira que a utilização de índices na ecologia deve ser feita de maneira complementar aos estudos, e não como elemento primordial nas pesquisas. Outro ponto é que toda definição a ser usada em estudos deve ser descrita a priori, e não utilizar os próprios resultados para embasar a definição do termo. O exemplo que Hulbert utiliza é o seguinte: Nos estudos da distribuição espacial buscasse observar a agregação dos organismos e para tal se usa a razão entre a variação das observações pela média de indivíduos observados por unidade amostral. Se por acaso essa razão der 1,5, o que isso quer dizer? Alguém pode argumentar, que em média a agregação é 50% maior que o esperado caso os indivíduos fossem distribuídos ao acaso. Ok. Mas o que é agregação? A resposta será: A medida da razão entre a variação das observações pela média de indivíduos observados por unidade amostral. Isso é um raciocínio circular, que não leva a lugar algum. A definição de agregação deve ser feita antes de se calcular o índice, pois isso é o mínimo que se espera.
Apesar de parecer ser uma coisa simples de se entender, isso normalmente acontece. O que mais vemos na ecologia é o uso indiscriminado de índices, de formas e funções das mais variadas, sem que um exercício de reflexão seja feito anteriormente. Isso tem se tornado rotina, ainda mais que existe uma tendência cada vez maior de ecólogos peregrinarem nos caminhos da modelagem matemática (se isso é bom ou ruim, prefiro me abster de comentar). Cada vez mais os termos na ecologia vem se tornando vagos, sem explicação, pautados apenas no comportamento de funções matemáticas. Ou seja, para entender os padrões observados na ecologia, não devemos apenas ver se o que coletamos em campo se adequa a um índice ou uma função matemática, mas sim realmente interpretar o que significa se adequar a esses cálculos. E para essa interpretação é necessário uma prévia definição, que deve ser feita sobre conceitos ecológicos e/ou sobre a biologia das espécies. Assim toda a parte de modelagem matemática deve partir de definições claras da teoria ecológica.
E para finalizar, Hulbert encontrou um padrão bem interessante na distribuição das populações. Ele viu as densidades de agregação da população acompanha a topografia de onde elas se encontram. Um casamento perfeito entre o padrão populacional e a geografia local. É claro que existem razões para essa congruência, uma vez que a distância entre os indivíduos é definida por dois fatores, busca de alimento e frio extremo. Em locais mais quentes, não existe a necessidade de um agrupamento de indivíduos, pois a perda de calor é pequena para o meio, e além disso animais muito próximos podem se ferir devido a presença dos chifres nos adultos. Em locais mais altos e por isso mais frios, esse cuidado com não se ferir mutuamente é esquecido, pois a formação de agregados de indivíduos permite uma maior manutenção de calor. Essas explicações são uma prova contundente da importância de adequar um padrão observado antes de criar expectativas teóricas. Ciência é uma coisa séria.
Bruno Spacek, pensando em ir para Torres del Paine para capturar um Monocerus montanus para sua filha.