No dia 13 de Novembro, 120 pessoas foram mortas na França por um atentado liderado pela ignorância humana. Atos de ódio de um grupo que acabarão levando a sentimentos de ódio contra um povo inteiro. Cento e vinte vidas perdidas para sempre, além de muitas outras que sofrerão por consequência.
Nos sensibilizamos quando a barbárie ocorre onde não esperamos. Contudo, banalizamos a violência onde ela acontece rotineiramente. Atentados no Líbano e na Síria, Boko Haram matando e estuprando pessoas na Nigéria, extermínio de nossos compatriotas nas favelas… nada disso nos choca mais. Mas vidas humanas não devem ser comparáveis, e cada perda é irreparável. Uma história que deixa de acontecer.
Nove pessoas foram mortas na região de Mariana, Minas Gerais. Outras 19 estão desaparecidas. Cidades inteiras transformadas em uma wasteland de lama. Um cenário pós-apocalíptico não tão glamuroso quanto o cinema nos promete. Não estamos falando de destinos turísticos, ou de bairros nobres da metrópole onde “gente diferenciada” leva sua rotina saudável. Mas mesmo assim, estamos falando do Sudeste, a região que concentra os olhares de todo o país.
Ouvimos discursos inflamados e indignados sobre os atentados terroristas quando estes ocorrem, afinal, terroristas não financiam campanhas eleitorais no ocidente. Já algumas empresas de mineração e energia doam milhões quase simétricos para lados opostos da Guerra dos Tronos tupiniquim (e um valor ainda maior para o terceiro lado que comanda os outros dois).
Disseram que a lama não era tóxica. Ela apenas possui 1.300.000% de ferro acima do normal. Além de quantidades igualmente obscenas de arsênio, mercúrio e chumbo. A empresa diz que o material é inerte, mas com um mínimo conhecimento de química, descobrimos que o equilíbrio de compostos, temperatura e densidade em corpos d’água é extremamente delicado. Ciclos biogeoquímicos são famosos por arrancar os cabelos de estudantes universitários e pós-graduandos. E as teias alimentares são famosas por acumular mercúrio ao longo dos níveis tróficos, por exemplo.
Ouvimos que uma multa de 250 milhões de reais será aplicada a uma empresa por sua negligência em avaliações de impacto e falta de medidas ambientais coerentes. Para um cidadão como eu, parece muito, mas ainda é menos de 9% do lucro anual da empresa.
Em um mundo justo, faria sentido pensar que a empresa pelo menos pagaria indenização para todas as vítimas que perderam suas casas e seus bens para a onda de lama. Para as pessoas que até hoje não estão tendo acesso a água potável graças a este crime. Mas o mundo está bem longe de ser justo. Vivemos em um mundo em que ainda temos que conscientizar as pessoas de que mulheres são gente, por exemplo.
Quanto a danos materiais, é fácil discutir quanto a empresa deveria pagar. Mas quando chegamos aos danos irreversíveis, eu me reservo o direito de não ranquear: como punir uma empresa por mortes de pessoas e extinções de ecossistemas inteiros?
Eu gostaria de viver em um mundo onde as mortes de pessoas pudessem mobilizar suficientemente a sociedade para uma ação eficaz. Mas mais sonhador eu seria se imaginasse uma indignação contra o crime ambiental ocorrido. Em um país onde cientistas simplesmente não dialogam com a população, não descem de suas torres de marfim para se juntar aos desprovidos do fogo dos deuses, não me admira que ninguém dê a mínima para crimes ambientais. Estima-se uma perda de 100% das espécies de peixes do Rio Doce. Todo mundo se importa com peixes, eles servem de alimento e sustento para um bocado de gente. Mas a colossal maioria das espécies do Rio Doce também será extinta e ninguém saberá que elas existiram ali. Estranho ninguém notar todas as outras espécies que servem de alimento para os peixes. Negamos a espécies inteiras o direito de existir. Negamos a pelo menos nove pessoas o direito de viver.
(Legenda: Peixe morto e gastrópodes cobertos de lama)
Estou fora do Brasil. Não estou acompanhando a tragédia de perto e tenho que filtrar muito do que chega a mim. Este texto é só uma opinião estritamente minha baseada em todos os links que postei aqui e outros mais. Meus colegas do podcast podem emitir opiniões mais detalhadas do incidente mas eu precisava dizer isso. Que os franceses entendam que o ódio não é a solução para acabar com o ódio e que nós entendamos que a ganância não é a solução para a nossa sobrevivência neste pálido ponto azul.
Lucas é co-criador do podcast Dragões de Garagem e doutorando em Entomologia pela University of Minnesota. Quase nunca escreve no blog, mas há momentos em que as palavras precisam encontrar o papel (nem que seja virtual).